segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

João dos Santos - Breve história ilustrada



Documentário de 1985, numa cópia digitalizada em muito mau estado


www.clinico-psicologo.com

Why Men Are Killing Themselves


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Notas sobre Os Ataques de Pânico # 3


O pânico constitui uma tentativa extrema de tornar o desamparo apreensível para o psíquico. A especificidade metapsicológica do pânico situa-o dentro do campo dos estados em que a angústia é extrema e transbordante.

Paradoxalmente, o sujeito em pânico não busca escapar do incognoscível, nem dos restos irredutíveis à simbolização. Esses constituem a fonte de onde podem jorrar e realizar-se todos os possíveis, isto é, eles são a fonte potencial do traumático. No pânico, o sujeito parece tentar levar a sua experiência do desamparo ao seu nível mais extremo, mais insuportável, como uma forma de obter um certo domínio sobre ela. Desse ponto de vista, um ataque de pânico não pode ser concebido como a manifestação directa de uma pura descarga “automática” da energia pulsional, mas, antes, como um forço extremo no sentido de capturar o inominável.

Ser tomado por um ataque de pânico atesta, pois, o reconhecimento inequívoco por parte do sujeito da dimensão de desamparo fundamental subjacente ao funcionamento psíquico.

Através do pânico busca-se um certo domínio sobre as realizações possíveis do perigo. Trata-se, em última instância, de uma estratégia bastante singular de eliminação do horizonte do possível, no qual tudo o que é da ordem do terrível pode, efectivamente, realizar-se. Tal estratégia consiste em tornar presente, imediato, aquilo que assusta apenas por ser possível. Ou, mais precisamente, é a própria dimensão – intransitiva – do possível que deve ser eliminada.

O pânico distingue-se do terror, estado afectivo caracterizado precisamente pela perda de referências a um lugar de desamparo no psíquico. No terror, o desamparo é sem limites, está em todo o lugar e todo o momento. O não-senso é a sua marca fundamental. Já o pânico refere-se aos momentos de vacilação em que os limites que o sujeito reconhece como separando-o de um abismo infinito parecem apagar-se. O terror implica paralisia, entrega de si mesmo ao mortífero. É do lado da vida que se tem pânico.



In Pânico e Desamparo
Mário Eduardo C. Pereira




quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Notas sobre Os Ataques de Pânico # 2


No pânico é antes o morrer do que a morte o que se constitui em problema. O pânico constitui a marca e a prova de que o aparelho psíquico descobriu a sua precariedade fundamental enquanto tal. Através do ataque de pânico, o sujeito busca, de alguma forma tornar apreensível no plano psíquico a experiência inominável do desamparo. As experiências repetidas do “estar morrendo” que se instalam no pânico parecem constituir uma tentativa de obter um certo domínio sobre o que escapa às possibilidades de simbolização e que é vivenciado sob o nome geral de “morte”. Ter ataques repetidos de pânico constitui uma tentativa, por assim dizer, de esvaziar a morte do seu conteúdo incognoscível, por meio de uma actualização-antecipação do momento de entrada nesse estado de desvalia; trata-se de um esforço por “tocar” o impossível, aquilo que escapa sempre e necessariamente ao psíquico, isto é, um esforço de controlar o momento de abandono por parte do outro suposto protector e fiador do mundo.

A experiência de desintegração psíquica acompanha a ameaça do seu desaparecimento. O sujeito em pânico considera que a presença concreta do outro fiador da estabilidade do seu mundo é uma condição indispensável para a sua própria sobrevivência. Se há algo de mortal no pânico é essa sorte de ataque contra si mesmo como expressão de apelo – mas também de revolta e desespero – diante do outro protector que abandona.

Um ataque de pânico constitui, assim, um grito desesperado, um pedido de ajuda e uma expressão de revolta dirigidos a este fiador superpotente de quem o sujeito espera protecção e amor.

A crise de pânico dirige-se, portanto, ao Outro (“pré-histórico e inesquecível”) ainda que este não possa ser objectivado em alguém delimitável: a crise constitui um pedido de amor, um reconhecimento, um apelo ao sujeito para não ser abandonado, sem ajuda, ao seu próprio desamparo. As vertigens e as sensações de estar em queda livre (de estar caindo sem parar), tão frequentes nos ataques de pânico, parecem manifestar corporalmente a vivência de abandono pelo objecto protector, fiador da estabilidade do mundo.

Realmente não há garantia para nada, ninguém me pode proteger contra o possível.

Até ao início das crises, a questão do desamparo não se colocara de facto. Quando, subitamente, o individuo se vê confrontado com ela, a ilusão desaba mas nada consegue ser colocado no seu lugar. Não há nenhuma possibilidade de subjectivação da falta de garantias pois essa “descoberta” terrível é feita toda de uma vez. Restam apenas o desespero e o esforço desatinado para “fazer alguma coisa”: a confluência dessas duas tendências materializa-se no pânico.

O abandono tão temido pelo indivíduo acometido por ataques de pânico tem contornos bastante específicos. Primeiro, apresenta-se como algo concreto: a ameaça de separação de uma pessoa em particular, da perda de uma situação estável, o medo de que mudanças venham a interferir de modo catastrófico na sua vida habitual ou na sua saúde.

Eles [ataques de pânico], começam frequentemente (…) após um evento que confirma ao sujeito o carácter incerto, imprevisível e potencialmente ameaçador do mundo. Assim, a morte de um ente próximo, uma doença grave na família, a separação de um ser amado são situações relatadas de modo quase rotineiro aos que cuidam de pessoas sofrendo de ataques de pânico como tendo desencadeado os ataques. A perda real de um próximo constitui para esses sujeitos a mais abominável concretização dos seus fantasmas de abandono e de impotência ante um mundo excessivamente perigoso. Eles constatam: “Então a situação de desamparo é mesmo possível!” e ficam desesperados.


In Pânico e Desamparo
Mário Eduardo C. Pereira



segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Notas sobre Os Ataques de Pânico # 1


Os ataques de pânico – brutais, incompreensíveis, repetitivos – não parecem remeter a nada senão a eles mesmos, constituindo-se aparentemente uma experiência de pura perda. Aos olhos de quem os experimenta, tais ataques podem parecer absurdos e sem qualquer relação com o resto da sua vida psíquica. Eles apresentam-se como “espontâneos” e “incompreensíveis”.

O pânico apresenta-se antes de mais nada como esmagamento da linguagem, mutismo e paralisia, colocando o sujeito necessariamente na situação de só poder falar da sua aterradora vivência psíquica a posteriori [nachtraglich], num tempo em que não se está mais em pânico.

(…) o pânico é o estado afectivo que se instaura quando o aparelho psíquico, vendo-se radicalmente confrontado com a Hilflosigkeit – sua dimensão de desamparo fundamental – descobre, com terror, que o lugar onde esperava encontrar a presença concreta de um fiador da estabilidade do seu mundo está fundamentalmente vazio.

Tal confrontação, para resultar em pânico, implica (…) que até ao momento das crises, a dimensão de desamparo da linguagem havia sido “tamponada” naquele sujeito pela presença concreta de “objectos-fiadores” que permitiam a manutenção inalterada de uma ilusão de se estar totalmente protegido por um ser omnipotente, imortal e benfazejo.


Por vezes, a própria questão de falta de garantias sequer chega a ser colocada. O pânico instaura-se num momento de derrocada desse sistema de ilusões. (…) Instala-se, portanto, em momentos em que o aparelho psíquico se vê obrigado a reconhecer os limites enquanto tais, de suas possibilidades de simbolização, mas não suporta nem o peso nem as consequências desse reconhecimento, dado que a existência de tais limites passa a ser vivenciada como uma ameaça iminente de desabamento do mundo simbolicamente organizado.



In Pânico e Desamparo
Mário Eduardo C. Pereira




quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Sigmund Freud

Angústia


A angústia é um sinal do Eu visando impedir que o desenrolar dos processos psíquicos leve a uma situação em que a angústia ficaria totalmente incontrolável e invasiva. Freud afirmou por várias vezes que “o homem defende-se contra o terror [Schreck] através da angústia [Angst].

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Os textos que eu não escrevi # 5

Antiautoajuda para 2015

Quando as pessoas dizem que se sentem mal, que é cada vez mais difícil levantar da cama pela manhã, que passam o dia com raiva ou com vontade de chorar, que sofrem com ansiedade e que à noite têm dificuldade para dormir, não me parece que essas pessoas estão doentes ou expressam qualquer tipo de anomalia. Ao contrário. Neste mundo, sentir-se mal pode ser um sinal claro de excelente saúde mental. Quem está feliz e saltitante como um carneiro de desenho animado é que talvez tenha sérios problemas. É com estes que deveria soar uma sirene e por estes que os psiquiatras maníacos por medicação deveriam se mobilizar, disparando não pílulas, mas joelhaços como os do Analista de Bagé, do tipo “acorda e se liga”. É preciso se desconectar totalmente da realidade para não ser afetado por esse mundo que ajudamos a criar e que nos violenta. Não acho que os felizes e saltitantes sejam mais reais do que o Papai Noel e todas as suas renas, mas, se existissem, seriam estes os alienados mentais do nosso tempo.

Olho ao redor e não todos, mas quase, usam algum tipo de medicamento psíquico. Para dormir, para acordar, para ficar menos ansioso, para chorar menos, para conseguir trabalhar, para ser “produtivo”. “Para dar conta”, é uma expressão usual. Mas será que temos de dar conta do que não é possível dar conta? Será que somos obrigados a nos submeter a uma vida que vaza e a uma lógica que nos coisifica porque nos deixamos coisificar? Será que não dar conta é justamente o que precisa ser escutado, é nossa porção ainda viva gritando que algo está muito errado no nosso cotidiano de zumbi? E que é preciso romper e não se adequar a um tempo cada vez mais acelerado e a uma vida não humana, pela qual nos arrastamos com nossos olhos mortos, consumindo pílulas de regulação do humor e engolindo diagnósticos de patologias cada vez mais mirabolantes? E consumindo e engolindo produtos e imagens, produtos e imagens, produtos e imagens?


A resposta não está dada. Se estivesse, não seria uma resposta, mas um dogma. Mas, se a resposta é uma construção de cada um, talvez nesse momento seja também uma construção coletiva, na medida em que parece ser um fenômeno de massa. Ou, para os que medem tudo pela inscrição na saúde, uma das marcas da nossa época, estaríamos diante de uma pandemia de mal-estar. Quero aqui defender o mal-estar. Não como se ele fosse um vírus, um alienígena, um algo que não deveria estar ali, e portanto tornar-se-ia imperativo silenciá-lo. Defendo o mal-estar – o seu, o meu, o nosso – como aquilo que desde as cavernas nos mantém vivos e fez do homo sapiens uma espécie altamente adaptada – ainda que destrutiva e, nos últimos séculos, também autodestrutiva. É o mal-estar que nos diz que algo está errado e é preciso se mover. Não como um gesto fácil, um preceito de autoajuda, mas como uma troca de posição, o que custa, demora e exige os nossos melhores esforços. Exige que, pela manhã, a gente não apenas acorde, mas desperte.

Eliane Brum

Leia o texto completo Aqui


sábado, 27 de dezembro de 2014

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Para que serve a utopia?



Para que serve a utopia?

A utopia está no horizonte e se está no horizonte eu nunca vou poder alcançá-la porque, se caminho dez passos, a utopia vai distanciar-se dez passos, e se caminho vinte passos, a utopia vai colocar-se vinte passos mais além.
Ou seja, eu sei que jamais, nunca, a alcançarei. Para que serve? Para isso, para caminhar.


Eduardo Galeano, citando Fernando Birri

terça-feira, 22 de julho de 2014



"Enquanto não encerramos um capítulo, não podemos partir para o próximo. Por isso é tão importante deixar certas coisas irem embora, soltar, desprender-se. As pessoas precisam entender que ninguém está jogando com cartas marcadas, às vezes ganhamos e às vezes perdemos. Não espere que devolvam algo, não espere que reconheçam seu esforço, que descubram seu génio, que entendam seu amor. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é."

Fernando Pessoa.



Psicoterapia

domingo, 20 de julho de 2014

Os Mecanismos de Defesa do Ego


Freud utiliza pela primeira vez o termo “defesa” em 1894 (As psiconeuroses de defesa). Os mecanismos de defesa são estratégias inconscientes que o sujeito usa para tentar reduzir a tensão e a ansiedadefruto dos conflitos entre id, ego e superego.
 
Os mecanismos de defesa do ego são formas ilusórias de resolução, pois apenas disfarçam o conflito. Segundo Freud, a nossa vida psíquica desenrola-se sob o signo do conflito, ou seja, entre a necessidade de satisfação do id e os impedimentos e proibições que emanam da sociedade e estão interiorizados no superego. O conflito é “resolvido” pelo ego, que agindo segundo o princípio da realidade, procura conciliar forças pulsionais opostas, reduzindo desta forma a ansiedade intrapsíquica. Actuando principalmente de forma inconsciente protegem o indivíduo da angústia pela não tomada de consciência do conflito.
 
A ansiedade neurótica surge quando o ego sente que pode ficar sobrecarregado pelo id, dito de outra forma, quando as necessidades do id se tornam tão poderosas que o ego sente-se incapaz de as controlar, e a irracionalidade do id pode manifestar-se através de pensamentos e comportamentos.
 
Qualquer forma de ansiedade é desconfortável daí que se procure eliminar ou reduzi-la. A função do ego é lidar com a ansiedade, para isso, segundo Freud, vai recorrer aos processos aos processos ao seu dispor, ou seja, os mecanismos de defesa do ego.
 
Recalcamento: o sujeito envia para o id as pulsões desejos e sentimentos que não pode admitir no seu ego. Os conteúdos recalcados, apesar de inconsciente, continuam actuantes e tendem a reaparecer de forma disfarçada (sonhos, actos falhados, lapsos).
 
Regressão: o sujeito adopta modos de pensar, atitudes e comportamentos característicos de uma fase de desenvolvimento anterior. Face à frustração ou incapacidade de lidar com certos problemas, a criança ou o adulto regridem, procurando a protecção sentida no passado.
 
Racionalização: o sujeito oculta de si e do outro as verdadeiras razões e justifica racionalmente o seu comportamento, retirando assim, os aspectos emocionais de uma situação geradora de angústia.
 
Projecção: o sujeito atribui a outros (sociedade, pessoas, objectos) desejos, ideias, características que não consegue admitir em si próprio.
 
Deslocamento: o sujeito transfere pulsões emoções do seu objecto natural, mas “perigoso” para um objecto substitutivo, mudando assim o objecto que satisfaz a pulsão.
 
Formação reactiva ou compensação: o sujeito “resolve o conflito entre os valores e as tendências consideradas inaceitáveis apresentando comportamentos opostos às pulsões. Ser, por exemplo, extremamente amável com alguém que odeia.
 
Sublimação: o sujeito substitui a satisfação pulsional por algo socialmente aceite. A eficácia do processo de sublimação implica que o objecto de substituição satisfaça o sujeito de forma real ou simbólica. Arte.


Psicoterapia

segunda-feira, 2 de junho de 2014

No comboio da loucura sem bilhete de ida-e-volta


Neste magnífico trabalho de António Araújo - O Trem de doidos -, somos confrontados com dados históricos que possuem uma actualidade assombrosa. A experiência que David Rosenham efectuou em 1972, podia ser replicada hoje, e os resultados seriam exactamente os mesmos.

Como se não bastasse tem ainda uma entrevista à jornalista premiada Daniela Arbex que conta a história de vida e morte do Hospício Colônia, o maior do Brasil e que se encontrou em funcionamento até aos anos oitenta.


Leiam. Obrigatório!



Psicoterapia

terça-feira, 13 de maio de 2014

Catarse - Método Catártico

Método de Psicoterapia em que o efeito terapêutico procurado é um “purgação” (catharsis), uma descarga adequada dos afectos patogénicos. O tratamento permite ao indivíduo evocar e até reviver os acontecimentos traumáticos a que esses afectos estão ligados, e ab-reagi-los.

Historicamente, o “método catártico” pertence ao período (1880-1895) em que a terapêutica psicanalítica se define progressivamente a partir de tratamentos operados em estado hipnótico.

O termo catharsis é uma palavra grega que significa purificação, purgação. Foi utilizado por Aristóteles para designar o efeito produzido no espectador pela tragédia: “A tragédia é a imitação de uma acção virtuosa e realizada que, por meio do temor  e da piedade, suscita purificação de certas paixões.”

Breuer e depois Freud retomaram este termo, que exprime para eles o efeito esperado de uma ab-reacção adequada do traumatismo. Sabe-se efectivamente que, segundo a teoria desenvolvida nos Estudos sobre a Histeria (1895), os afectos que não conseguiram encontrar o caminho para a descarga ficam “coarctados”, exercendo então efeitos patogénicos. Resumindo mais tarde a teoria da catarse, escreve Freud: “Supunha-se que o sintoma histérico tinha origem quando a energia de um processo psíquico não podia chegar à elaboração consciente e era dirigida para a enervação corporal (conversão) […]. A cura era obtida pela libertação do afecto desviado, e a sua descarga por vias normais (ab-reacção).

A catarse nem por isso deixa de ser uma das dimensões de toda a psicoterapia analítica. […] Do mesmo modo, a perlaboração, a simbolização pela linguagem, estavam já pré-figuradas no valor catártico que Breuer e Freud reconheciam à expressão verbal: “É na linguagem que o homem encontra um substituto para o acto, substituto graças ao qual o afecto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira…”




Vocabulário da Psicanálise – J. Laplanche & J.B. Pontalis 





Psicoterapia


"Não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos."

Anaïs Nin  

segunda-feira, 5 de maio de 2014



(...) mãos fechadas, é assim que nascemos, pensou ele, com os punhos cerrados, o meu filho não agarra em nada senão nele mesmo, mas aos poucos aprenderá a abri-las, aprenderá que para ter coisas é preciso abrir as mãos, só assim se consegue amar, não é (...)

Para onde vão os guarda-chuvas
Afonso Cruz

domingo, 27 de abril de 2014

Liberdade


Nos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nome

Em todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nome

Nas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nome

Nas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nome

Nos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nome

No bafejar das auroras
no oceano nos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nome

Na espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nome

Nas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nome

Nos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nome

No candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nome

No meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nome

No trampolim desta porta
nos objectos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nome

Na carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nome

Na ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nome

Na saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nome

Por poder de uma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te

Liberdade.



Paul Éluard

trad. Jorge de Sena

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A dor


Sei, hoje, exactamente aquilo que falhei:
não senti a dor até ao fim. Fugi
antes que ela se tornasse coisa nenhuma
e fosse já nada diferente de mim, do que sou
antes, depois, durante as coisas sensíveis
tangíveis, tacteadas, apalpadas na escuridão
dos anos.
Sem luz nem cor nem beleza possível
de julgar.
E, súbito, tudo são corpos a cair contra corpos
imaginar é o dom que lhes foi dado.
imaginar a beleza e a fealdade, o longe e o
perto que se está de cada coisa.

Nenhuma vitória me ensinará mais que um naufrágio
nenhuma vida é mais vida por ter mais risos que palhaços
menos esperas que encontros.
A vida eterna não promete o sol nem o calor nem a riqueza nem
abraços. Os livros
falam da paz. E da paz só. A paz apenas prometem, por isso
sei, hoje, o que sonhar para a morte.
Subo e desço das camas, das cadeiras, dos lugares
agarro-me ao que acaba como se o mar me fosse engolir depois
enquanto as trevas rodam em torno da terra e
deixam intervalos de luz,
corro contra as horas
para não chegar tarde, para não ser esquecido
para não me mentir

mas o que importa é subir e descer, manter-se
à superfície de si mesmo, não interessa em que mar
as camas, as cadeiras, os lugares, os corpos sem cor
continuarão antes depois durante os intervalos de luz
e só eu poderei responder à morte
a que preço está a vida eterna,
em quantos anos pagarei
os juros do empréstimo
com que comprei a paz.

Alexandre Borges – Heartbreak Hotel


Psicoterapia

quinta-feira, 27 de março de 2014

A SÍNDROME DO BURN-OUT

“Oito em cada dez portugueses estão exaustos e querem mudar de emprego”: eis o título de uma notícia do PÚBLICO, na semana passada, onde se divulgava o resultado de um inquérito.
Esta forma de exaustão é global, é uma epidemia, e foi baptizada em língua inglesa com um nome cuja tradução ainda não foi fixada com rigor nas línguas latinas: burn-out. Diz-se que o pai do conceito é Graham Greene, que o utilizou como título de um romance, de 1960, A Burnt-out Case (a ortografia do termo inglês tinha, então, um t final).
O burn-out é uma doença da civilização, exclusivamente ligada aos aspectos que caracterizam a organização contemporânea do trabalho.
Distingue-se, pois, da depressão, que não precisa do contexto laboral para se revelar.
Esta doença do bom cidadão trabalhador, que sofre um “incêndio” metafórico (como sugere a palavra inglesa) apresenta os seguintes sintomas: fadiga até ao limite do esgotamento, ansiedade, incapacidade de controlar o stress, despersonalização e impotência.
Esta doença do “too much” é reveladora de um demónio – o demónio do trabalho – que retira o mais precioso dos nossos bens: o tempo. E a palavra “demónio” justifica-se plenamente porque os estudiosos desta doença social dizem que ela tem um equivalente na acédia medieval – esse mal de que sofriam os monges na Idade Média e que os fazia perder a fé no sistema divino. Por conseguinte, o burn-out é para as empresas o que a acédia foi para a Igreja.
Em média, o tempo de trabalho é hoje superior ao que vigorava no século XIX. Todas as utopias que prometiam uma sociedade do lazer e viam no progresso tecnológico um meio que nos libertaria do trabalho foram desmentidas. Pior do que isso: a evolução e multiplicação dos utensílios, em vez de serem factores de libertação, dilataram o tempo de trabalho e elevaram à máxima potência a lógica económica que se realiza na corrida pelo aumento da produção e do lucro.
Evidentemente, isso só foi possível pondo em prática métodos de gestão que submetem, controlam, pressionam, induzem a uma competição que quebra solidariedades e criam delatores. Veja-se, aliás, como o apelo governamental à delação – algo que outrora seria considerado abjecto – se começa a generalizar.
O burn-out consiste em ultrapassar o limiar da resistência a uma adaptação violenta, coerciva, que, no limite, exige dos empregados que eles sejam “empreendedores” e, até, que os artistas se inclinem perante os códigos e as prerrogativas das indústria culturais.
Adaptação e flexibilidade são os nomes da actual ideologia do trabalho e da produção.
A descoberta desta doença chamada burn-out deve-se muito a um médico americano (nascido na Alemanha em 1926), chamado Herbert J. Freudenberger, que a diagnosticou em si mesmo.Ao tratar de toxicómanos numa clínica de Nova Iorque, ele descobriu a certa altura que estava mais doente do que eles.
Esta situação é a regra em que vivemos: os hospitais estão cheios de médicos doentes; as escolas estão cheias de professores que temem mais as aulas e a avaliação a que estão submetidos do que os alunos que eles ensinam e avaliam; os guardas das prisões estão tão encarcerados como os detidos que eles vigiam. Não há exterior ao tempo de trabalho. E, imersos em tudo isto, aqueles que dizem combater o capitalismo, ou pelo menos as suas lógicas mais nefastas, não fazem senão exaltar o trabalho e fixar as formas de vida que ele implica. O axioma de Carl Schmitt, segundo o qual o nosso inimigo se assemelha a nós, encontra aqui uma bela confirmação.
António Guerreiro
in Ípsilon (21.03.2014)


psicologia clínica

domingo, 16 de março de 2014

Retornos



Retornos

Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.
Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe --mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.
Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por ora dorme, todo enroscado.


SZYMBORSKA, Wisława. Poemas. Tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.



Psicoterapia

terça-feira, 11 de março de 2014

Nós somos um bocadinho mais que uma reacção química?!


Recentemente estive a conversar com um jovem sobre a sua ansiedade, que era sentida por ele como muito intensa. Quando lhe perguntei acerca do que seria a sua ansiedade ele disse que não sabia. Quando lhe sugeri que podíamos tentar explorar sobre o que se tratava a ansiedade ele disse que era tão intensa que devia ser bioquímica. Isso significava que para ele a ansiedade não podia ser entendida como sendo psicológica, mas tinha que ser tratada como parte da sua “doença”. Eu reconheci que a ansiedade envolve bioquímica, mas mostrei-lhe que também existem experiências e interpretações das experiências que despoletam reacções químicas. Por exemplo, se alguém aponta uma arma na nossa direcção, provavelmente vamos sentir um intenso processo bioquímico dentro de nós mas a experiência não seria “apenas bioquímica”.

Se as pessoas procuram compreender (se) e trabalhar os seus problemas emocionais é essencial que tenham curiosidade sobre as suas experiências/vivências e possam reflectir sobre o que os pode ter desencadeado. Por vezes essa curiosidade ou reflexão trás importantes informações sobre essas experiências, e pode, por vezes, permitir a identificação do que fez despontar a ansiedade e dessa forma possibilitar a sua resolução. Claro que situações de ansiedade e de depressão, normalmente têm origem em experiências muito mais complexas, e implica uma maior reflexão.

Vivemos numa sociedade que não gosta da complexidade e da reflexão profunda, de modo que já temos um viés na direcção de pensar que as emoções perturbadoras não fazem sentido e rapidamente concluir que se trata apenas de uma questão química. Este viés faz-nos pensar que não devemos vivenciar estados emocionais perturbadores, por isso temos tendência a afastá-los ou a dissociá-los o que torna mais difícil entendermos as causas e decidir o que fazer com eles.

Aqueles que comercializam drogas psiquiátricas aproveitam este viés cultural para oferecer uma pseudo-explicação sedutora, de que os estados emocionais indesejáveis ​​e que não são facilmente resolvidos devem ser o resultado de um "desequilíbrio bioquímico" ou algum outro problema biológico. A nossa cultura tornou-se fortemente influenciada por esta forma de ver as coisas, ao ponto da maioria acreditar que os problemas emocionais graves para os quais não há uma explicação fácil devem ser causados por uma falha bioquímica, em vez de ser algo que pode ser potencialmente compreendido e resolvido.

O triste resultado deste esforço de marketing tem sido o drástico agravar da tendência cultural para evitar ouvirmo-nos uns aos outros e a nós mesmos. Qualquer problema mental ou emocional que não pode ser resolvido rapidamente é "bioquímico" e não vale a pena sequer tentar entender, pelo contrário, devemos partir logo para as drogas.

Quando as pessoas estão traumatizadas ou quando experimentam conflitos que excedem a sua capacidade de lidar com eles dá-se uma dissociação. Quando a dissociação é o problema, há uma necessidade de trabalhar no sentido de uma maior compreensão e integração. No entanto, o efeito da crença no desequilíbrio bioquímico vai aumentar a dissociação. Ao invés de se questionar acerca das origens da ansiedade ou da depressão, por exemplo, a pessoa convencida de que é um desequilíbrio bioquímico procura apenas livrar-se dela sem tentar compreender a sua origem interna.

Quando as pessoas estão convencidas que os seus problemas são bioquímicos têm menos propensão em explorar o problema com outras pessoas ou com um terapeuta. E, quando o terapeuta está convencido de que o problema do paciente é "bioquímico" então, deve aconselhá-lo a procurar tratamento através da medicação. (as teorias do “ desequilíbrio bioquímico" também são óptimas para explicar as falhas de compreensão por parte dos terapeutas!)


O resultado final desta desinformação provocada pelo marketing pode ser extremamente iatrogénica, e ser uma das causas primárias, juntamente com os efeitos secundários a longo prazo das drogas, do agravamento da saúde mental.


Adaptado e traduzido daqui


Psicoterapia

Psicoterapia - uma definição


Gostaria
que houvesse alguém que ouvisse a minha confissão.
Não um padre. Não quero que me digam os meus pecados.
Não a minha mãe. Não quero causar tristeza.
Não uma amiga. Não entenderia o bastante.
Não um amante. Seria parcial demais.
Não Deus. Ele é tão distante.
Mas alguém que fosse ao mesmo tempo
o amigo, o amante, a mãe, o padre, Deus e ainda um estranho.
Não julgaria, nem interferiria
e, quando tudo tivesse sido dito desde o inicio até o fim,
mostraria a razão das coisas, daria força para continuar
e para resolver tudo à minha própria maneira.


Poema de 1916, atribuído a uma adolescente americana de 15 anos.



Psicoterapia